Muitos de vocês que me seguem não conhecem a minha história. Então, compartilho nesse espaço um pouco de mim.
Sou filha de uma costureira e de um pai alcoolista. Sempre amei as letras, as palavras, as frases, os textos, os livros. Encontrei neles a forma de fugir da realidade, de construir outra realidade e de mudar a realidade de muitas pessoas. Meu oficio sempre foi escrever, descrever e reescrever. Vejo as infinitas possibilidades de combinação de letras e palavras e enxergo ali todo o potencial que um texto tem para mudar o mundo.
Dos diários da adolescência às cartas de amor, sempre estive cercada de palavras. A folha em branco é convite perfeito para um novo começo, para uma nova história.
Com 17 anos, aluna de escola pública e sem muitos recursos, sonhava em ser “alguém”. Passei no vestibular para o curso de Ciências Econômicas na UFMG e, contrariando as previsões otimistas da profissão de Economista, nunca fui bem-sucedida na área nem feliz naquele lugar. Via pessoas totalmente diferentes em termos de educação, prestígio e formação. Ali entendi o sentido da expressão (desgastada mas real) “desigualdade social”. Eu era uma estranha naquele mundo. Eu trabalhava à tarde e à noite e estudava pela manhã. Tudo muito “injusto” na minha visão ainda adolescente. Eu não tinha dinheiro para o lanche, para roupas, para nada; ajudava em casa, era esforçada, mas parecia tudo tão longe de mim.
Aos 18, engravidei. Sim, eu tinha informação. Não, eu não planejei ficar grávida tão jovem. O pai da minha boneca, hoje já recuperado, na ocasião era dependente químico, mas topou o desafio de assumir um compromisso. Saí de casa e nunca mais voltei. O desejo era me libertar de brigas advindas da bebedeira do meu pai, da hostilidade típica de onde há pouco dinheiro e muitos irmãos. Não sinto que faltava amor no meu lar. Mas faltava harmonia. Eu sempre precisei de tranquilidade, de calmaria. Sempre preferi as águas serenas proporcionadas pela rotina.
Ato realizado é ato passado e nada poderia me fazer desistir da vida que eu gerei. Continuei no curso de Economia fazendo todas as economias possíveis para criar a menina dos meus olhos: “Júlia”. Uma casa de 45m2 financiada pela Caixa num programa estilo “Minha Casa Minha Vida” era o que eu podia ter e me fazia muito feliz. Dez anos de financiamento e a certeza de que as coisas dariam certo. Lembrava-me sempre da mãe da Cinderela: “Seja gentil e corajosa”. Era isso que a vida esperava de mim e era exatamente isso que daria a ela: coragem e gentileza.
Curso avançando, parto inevitável, vida seguindo como a de todo mundo. Então, comecei a dar aulas de matemática em escolas públicas e particulares com o antigo CAT (autorização para lecionar concedida pelo MEC a graduandos de áreas específicas). As brigas da minha casa ganharam contornos mais amargo no lar que construí com pouco dinheiro, uma filha recém-nascida e alguém que precisava de ajuda. O mundo parecia não compreender a minha necessidade de paz. Abri mão do meu primeiro marido, do pai da minha filha, de alguém que poderia ter me protegido se não tivesse escolhido o caminho do vício. Eu tinha de tomar uma decisão. Escolhi criar a minha Júlia longe daquele ambiente tão parecido com o ambiente em que cresci. Tenha coragem e seja gentil. Eram as palavras que ressoavam no meu coração. Eu não desisti. Eu não desistiria nem de mim nem da minha filha. Fora da casa dos pais, desencaixada do curso de Economia, sem um anjo protetor, mas cheia de determinação.
Aos 21, um novo vestibular e uma busca: a realização.
Na lista dos aprovados da UFMG de 2001, a esperança. Entre os classificados para a graduação em Letras, lá estava a filha da costureira tentando remendar sua história. Da matemática para o português, a transição foi suave. Nas palavras, encontrei apoio e consolo. Nas palavras me encontrei.
Aos 22, o mundo parecia conspirar a meu favor. Estudava pela manhã, dava aula à tarde e à noite, minha mãe olhava minha filha e, finalmente, adorava o meu trabalho e a minha graduação. Nos cursos de licenciatura, as pessoas, em geral, são menos favorecidas economicamente. Via minha história em tantas outras histórias que conheci. Eu me reconhecia naquele espaço. Sentia-me finalmente parte.
Aos 23, conheci o primeiro aluno especial da minha vida: Júlio César. Eu não tinha nem televisão em casa por falta de grana. Como ia namorar um aluno de supletivo que morava na Zona Sul? As coisas aconteceram naturalmente. Encontrei nele um amigo, um homem disposto a me ajudar a educar minha filha e despreocupado com o fato de eu ter vindo “de baixo”. O primeiro presente foi a televisão, o mais generoso foi o tratamento de dente da minha mãe e o mais especial foi o meu segundo filho: Víctor. Ele saiu da Zona Sul e veio morar no fim do mundo para que eu continuasse perto da minha mãe. Tempo de serenidade. Tempo de paz. Mas a vida é cíclica. Quando tudo ia bem, minha mãe adoeceu. Ouvi pela primeira vez a palavra câncer.
O amor não durou tanto quanto a amizade que ainda temos e veio o segundo divórcio. Minha mãe faleceu de câncer, meu pai faleceu de câncer. Meus filhos foram a um só tempo meu porto seguro e meu conforto. Enfim, adulta. A vida real é assim.
Em 2004, a formatura, novos empregos e uma descoberta: é muito bom ajudar os outros. Resolvi participar de grupos de voluntários como forma de compensar o universo pelas oportunidades. Meus pais, em especial minha mãe, serão sempre uma lacuna sem solução. Crianças, enfermos, idosos eram agora uma outra família que adotei para me conhecer melhor e para compreender que existe “sofrimento” além de mim.
Todos os meus problemas pareciam tão pequenos. Minha infância sem recursos. A gravidez na adolescência. A jornada exaustiva de 15, 18 horas de trabalho e estudo. Tudo era muito menor perto da vida que me foi apresentada pelo trabalho voluntário.
Das escolas, para os cursos de CEFET/COLTEC, dos cursos para os pré-vestibulares, dos pré-vestibulares para o Concurso Público. Eu precisei de coragem. Muita gente no caminho me estendeu a mão. Ninguém nega ajuda a quem pede. Sempre recebi o apoio de colegas, parentes próximos e distantes. Sempre pude contar com a minha irmã na falta dos meus pais.
Alguns concursos de literatura me ajudaram a melhorar de vida. Prêmios por crônicas, poesias e até por contos eróticos (por que não? Até Machado de Assis se aventurou na literatura erótica!).
E do aluno especial passei ao professor especial. Mais um casamento. Mais uma experiência gratificante e outro filho: Tatá. Nos corredores da escola em que trabalhávamos, encontrei espaço para aprender a me divertir. Com pouco mais de 30 anos, nunca tinha tido tempo nem dinheiro para passear. Eu estava disposta a desfrutar um pouquinho das coisas que plantei. Em 2012, vi alguém que amo profundamente fazer escolhas erradas. Foram 11 meses visitando um presídio, foram 11 meses de tentativas infinitas para tentar apoiar alguém que não se decidiu por receber ajuda. Não tenho palavras para agradecer o pai do Tatá pelo companheirismo, pelo apoio ao meu irmão. A vida de ninguém é fácil. Na falta dos meus pais, sentia-me responsável por ele, pela minha família. Hoje tenha ciência de que ele – e qualquer um – deve ser o autor da sua própria história. Torço para que suas escolhas sejam as melhores possíveis. Torço para que ele tenha coragem de se reinventar e de escrever uma nova história.
E, se os dramas pessoais já estavam pesados demais, de repente, a palavra câncer veio me assombrar novamente. Um rim ruim. Eu estava doente. Acho que com 33 anos, um filho de apenas um ano e outros dois mais crescidos, eu merecia estar saudável. Mas eu não estava. E, no dia 20 de dezembro de 2013, abri mão do rim ruim.
Mais de oito horas de cirurgia. Na minha cabeça, ressoavam as velhas palavras que embalaram meus sonhos: “seja gentil e corajosa”. Não poderia culpar Deus, meus pais ou quem quer que fosse. Poderia aproveitar para aprender com aquilo tudo.
Àquela altura, já morava em um apartamento quatro vezes maior que a minha primeira residência, tinha três filhos, três ex-maridos, com os quais sempre pude contar, alguns livros publicados e um rim ruim. Não dava para abrir mão de tudo por causa da doença. Apenas tirei o rim para seguir mais leve.
Sem um rim, aprendi a dançar, a falar o que penso, a buscar os meus sonhos, a não ter personalidade social, a ser autêntica, a experimentar. Casei-me novamente porque não desisto do amor. Não tenho medo de sofrer, de perder, de arriscar. Sigo sem temer as sobras do passado ou as incertezas do futuro. Vivo do presente.
E aos que me perguntarem por que resolvi me expor, a resposta é simples: não tenho vergonha da minha história. Na verdade, é dela que tiro forças para ser alguém melhor todos os dias.
Em agosto, o curso Flávia Rita comemorou 1 ano de casa nova. Conheça a história!