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A ÚLTIMA GOTA

Equipe Flávia Rita

A ÚLTIMA GOTA

Ela acordou nervosa naquele dia. A torneira pingava, algumas lâmpadas estavam por trocar, e a ideia de precisar de um “marido de aluguel” era simplesmente nociva à sua visão de mundo.

 

Se fosse para contratar um marido de aluguel, pensava, faria jus às duas palavras em separado, sem se preocupar com qualquer outro implícito que pudesse haver entre elas.

 

Precisava mesmo de um marido de aluguel? Quanto mais o dia se adiantava, mas se inquietava com a situação. Berrar, gritar eram formas de extrusão quase corriqueiras, mas costumam ser manifestações sem conteúdo, como ocorre com a maioria das mulheres.

 

Brigava por nada, sem necessidade de reflexão. Brigava apenas para se sentir presente e se fazer valer diante do sexo oposto. Os vizinhos, aposto, exercitavam a curiosidade inata do ser humano em suas falas proferidas de modo exaltado, dando mais a impressão de monólogo que de discussão. Ela gostava de brigar. Sim, é verdade. Mas é verdade também que, naquele dia, uma angústia (muito mais avassaladora que a angústia habitual) ocupou o lugar das palavras pronunciadas em vão.

 

Olhava para a casa e para si mesma. Buscava uma sequência de explicações para a desordem aparente do ambiente físico e das suas estruturas emocionais. Via, em todos os lugares, algo que lhe dava uma ponta de inveja… (e não era inveja boa, para não ser tomada de demagogia e do politicamente correto).

 

O marido da amiga era prestativo, ajudava com as crianças e com as tarefas domésticas. O cunhado, sem atributos físicos relevantes, era,  pelo menos conhecedor de cabos, tomadas e furadeiras. A irmã, supunha, jamais pensaria em contratar um marido de aluguel, pelo menos não para serviços domésticos.

 

Ela não conseguia se conformar… Vem de novo o barulho da torneira. E ganha força a imagem que tem acerca do universo masculino. Os homens… os homens… num suspiro quase dolorido reflete sobre a essência deles. Fortes, capazes, seguros na manutenção de aparelhos domésticos e na troca de chuveiros. Realmente, não fazia sentido: moderna, independente – e machista. Machista sim, porque – se feminista fosse  – executaria as tarefas, assumindo para si responsabilidades que, socialmente, são delegadas ao outro sexo.

 

Ela era então machista, mas de tipo confuso, híbrido, indefinido. Aceitava dividir contas. Não esperava ser procurada pelo marido para o sexo e se recusava a fingir orgasmos. No entanto, achava uma ofensa o marido não trocar lâmpadas nem compreender a ciência básica das buchinhas de torneira.

 

Ambos trabalhavam, resolviam o destino dos filhos e compartilhavam uma rotina comum aos casais que ultrapassam os dez anos de matrimônio. De repente, é tomada por outro problema desconcertante – o do tempo. Não deveria ela, diante de tantos anos de convivência, ter se acostumado a tal situação?

 

A torneira parecia pingar um pouco mais forte como se, de fato, quisesse contribuir para a sua instabilidade interna. O crepúsculo já se aproximava e, com ele, seus maiores conflitos: o escuro decorrente das lâmpadas por trocar e a chegada do marido.

 

Podia, ao longo do seu dia de folga, ter chamado alguém para resolver o problema. Um marido de aluguel, o porteiro, até mesmo o cunhado já acostumado aos pequenos reparos naquela casa. Mas não dava. Realmente seria demais para o seu orgulho feminino arrumar alguém para executar tarefas que, na sua visão, competiam ao seu conjugue e a mais ninguém.

 

Não se ofendia em realizar afazeres domésticos: lavar, passar, cozinhar… Embora não fossem ações de seu cotidiano, eram factíveis ainda que depusessem contra a sua condição de mulher moderna. Mas a torneira e as lâmpadas estavam fora de cogitação.

 

À medida que a noite se aproximava, ficava ainda mais apreensiva. Se ele não queria fazer o serviço, por que não contratou alguém que o fizesse? E vem a voz do marido em promessa quase política: “vou dar um jeito nisso”, como se ouvisse a ladainha frequente em torno dos reparos de que necessitava a casa. E pensa num átimo onírico que, se deixasse tudo a cargo do marido, ele poderia ser menos eleitoreiro e resolver o problema.

 

O problema? A palavra ganha forma, se agrava, se propaga para campos inimagináveis.

 

O problema.

 

Era isso.

 

Ela enxergava o problema – fosse ele a torneira, a contratação do marido de aluguel ou a promessa sempre fugidia do marido. Já ele nem sequer conseguia se sentir afetado pela falta de luz em dois ambientes da casa.

 

O barulho da torneira se fundia a tantos barulhos mais internos que a tocavam.

Ela estava mexida naquele dia. A toalha molhada na cama, o rádio alto ou qualquer outra coisa teriam, talvez, produzido o mesmo efeito da lâmpada mágica. Estava insatisfeita – só isso. Nem o marido, nem o cunhado, nem o porteiro, nem o marido de aluguel seriam capazes de perceber as sutilezas daquela inquietação. Fechados no mundo objetivo, não seriam intérpretes adequados para o problema. Sequer conheciam o problema.

 

Por vezes, ela tentava o diálogo passivo ou pacífico. Esperava que ele percebesse, notasse, mas estava fora de seu alcance. Estava distante da capacidade masculina compreender o que ela não dizia. Estava fora de cogitação decifrar suspiros, olhares marejados ou pausas insistentemente significativas.  Estava distante do potencial transformador que pode ter o olhar atento de um para com o outro no ambiente familiar.

 

O marido chega. A voz dele sufoca os pingos que ela ouvia ao longo de todo o dia. A falta de luz dá espaço ao que só pode ser visto com o coração. Trocam duas ou três palavras apenas… ainda avaliam, de modo reservado, com singularidade, a manhã conturbada da folga atípica.

 

Pensava no tempo dissipado, desperdiçado.

 

Ela se deita ao lado dele no quarto de TV sem luz.

 

A palavra problema vai lentamente perdendo significado. Vai lentamente dando espaço a outras palavras que, quando verdadeiras, nunca precisam ser ditas.

 

 

 

 

 

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